Assisti três séries na Netflix e percebi que seria possível fazer algumas conexões quanto às histórias dos crimes cometidos, mas o que chama a atenção é que uma voz é dada para estas pessoas que cometeram mortes violentas.

Sinner

Jovem mulher assassina homem num lugar público. Confessa o crime, não aceita defesa de advogado e não sabe explicar porque fez aquilo. Um investigador se aprofunda neste “esquecido” mundo da protagonista e quer escutá-la, a investigação avança a partir da escuta.

Na progressão do investigador aparece a história da protagonista. Ela tem uma irmã mais nova que nasce com uma doença degenerativa e qualquer piora que a menina tem, a irmã é castigada ou tem que fazer sacrifícios impostos pela mãe para que a mais nova sobreviva.

​​MindHunter

A série se passa nos Estados Unidos, na década de 70, dois agentes do FBI, um jovem negociador de sequestros e um agente veterano, começam a ouvir assassinos presos que cometeram crimes violentos para entender como eles pensam e o que haveria motivado as séries de assassinatos feito por cada um deles.

Os agentes do FBI vão até às penitenciárias com um gravador em mãos e entrevistam cada um destes assassinos, a fala deles ajuda a dar outras conclusões para aquelas mortes. Uma pesquisadora da área da psicologia adaptou as entrevistas para um formato de coleta de informações nos moldes científicos, mas os entrevistadores as faziam de maneira mais informal.

Alias Grace

A série, conta a história da personagem Grace, menina que foi da Irlanda para o Canadá e, na viagem de navio, sua mãe faleceu. No Canadá foi trabalhar como empregada doméstica em casas aonde morava; passou por várias casas até ir trabalhar, em 1843, na casa de um fazendeiro, convidada por sua governanta. Grace tinha 16 anos, com a convivência na casa, percebeu que a relação entre o fazendeiro e a governanta ultrapassava a relação entre patrão e empregada.

A série foi baseada no livro com o título em português de “Vulgo Grace” da escritora Canadense Margaret Atwoot que pesquisou o caso. Na ficção, há um jovem psiquiatra que se empenha em entrevistar a jovem que, depois de presa, passou a apresentar sinais de loucura e foi internada num manicômio onde ficou por 16 anos. Depois desse tempo voltou para a penitenciária. O que intriga o psiquiatra, além das crises de histeria de Grace, é que ela não se lembra dos acontecimentos ligados à morte dos patrões o que o faz questionar se ela realmente participou dos assassinatos.


Assisti essas três séries na Netflix e percebi que seria possível fazer algumas conexões quanto às histórias dos crimes cometidos, mas o que chama a atenção é que uma voz é dada para estas pessoas que cometeram mortes violentas. Há um desejo por parte daquele que escuta de conceder a palavra e conhecer melhor estas histórias. Ouví-las pelos seus autores. O efeito que isso tem é surpreendente possibilitando um curso diferente das explicações e respostas dadas pela criminologia, psiquiatria ou discurso jurídico.

No caso da série Mindhunter, os investigadores se surpreendem quando começam a ouvir os relatos dos próprios assassinos em série, pois falam de forma espontânea, com certa tranquilidade o que possibilita vê-los como homens para além do que os identifica como criminosos violentos. Isso estimula os investigadores neste trabalho e é criado um ramo específico deste tipo de investigação no FBI.

No livro “Vigiar e Punir”, na parte dedicada às prisões, o filósofo Michel Foucault fala de uma fabricação da delinquência e do quanto isso está interligado ao funcionamento da prisão e do judiciário. A partir do discurso da criminologia e da psiquiatria, o perfil do criminoso fica fácil de ser feito e encerrado para explicar os crimes e suas condenações. Para que haja condenação, facilita numa investigação, que haja confissão.

Na medida em que estes criminosos podem ser escutados, o crime pode falar sem nenhuma interpretação psiquiátrica ou psicanalítica e fica possível ver um outro viés destas tragédias, em alguns casos é possível até que as conclusões sejam diferentes ou, pelo menos, não tão imparciais, fixas, fechadas, apenas para ter as respostas exigidas pelo judiciário.

Num texto sobre a criminologia publicado nos Escritos, Lacan cita a máxima formulada por São Paulo de que “é a lei que faz o pecado”. As leis sempre se manifestam no grupo social em forma de transgressão, a obediência às leis não é intuitiva ou inconsciente, precisa ser transmitida. Toda sociedade manifesta a relação do crime com a lei através de castigos cuja realização exige um assentimento subjetivo, ou seja, para ser punido o sujeito precisa concordar com a sua punição de maneira que ela tenha uma significação.

A punição se constrói a partir de crenças presentes numa sociedade, sendo assim, é possível transformar o crime em algo objetivável, daí surge a criminologia que é o estudo dos crimes e das suas causas (particularmente em relação ao estado mental doscriminosos). Lacan diz que podemos estender as equações da psicanálise para as ciências humanas, em especial à criminologia, uma destas equações poderia ser o que se opera na escuta do outro através da transferência.

O que se chama em psicanálise de transferência é quando o analista se coloca a ouvir seus pacientes e quando o paciente toma a palavra para falar sobre o seu sofrimento e ao falar, o paciente transfere para o analista, de forma inconsciente, a relação que teve ou tem com figuras de autoridade.

Uma das definições dadas por Lacan sobre a transferência é a de que se trata de uma encenação da realidade do inconsciente através da experiência analítica. Essa perspectiva o fez ligá-la à pulsão. A transferência envolve o desejo do analista de ouvir; trata-se de um artifício que refere-se inconscientemente a um objeto que reflete outro; aparece como a materialização de uma operação que se relaciona com o engano de situar o analista no lugar de um suposto saber.

A transferência não é exclusiva da clínica ou da relação analista-analisando, na medida em que a pessoa que cometeu um delito pode ser escutada, ainda que não seja por um analista, é possível que pela via da transferência, o sujeito pode ter acesso a seu imaginário psíquico e que isso possibilitaria um acesso ao real que o fez passar ao ato de um crime.

O que os investigadores das séries fazem vai além da investigação dos crimes, eles dão a palavra a seus autores de maneira que possam significar os atos violentos de morte. A partir do desejo de escutar estas histórias, se constrói uma narrativa de suas vidas que talvez não pôde ser construída antes. Se somos seres de linguagem, de palavra, não basta ​ter ouvidos para ouvir o outro, há um desejo de ouvir que transforma tanto aquele que fala como aquele que escuta.